CAMINHANDO
COM
Cristiane
Takemoto.
Os Contos de Fadas e a Linguagem na
Infância
Nas últimas
semanas, temos conversado sobre os Contos de Fadas e talvez você já tenha se
perguntado como essas histórias podem ajudar os ouvintes, em especial as
crianças. Pensando nisso, falaremos hoje de alguns aspectos que podem ser
diretamente influenciados pela prática de ouvir e (re)contar histórias: o processo de aquisição e desenvolvimento
da linguagem oral.
Falar de
linguagem é sempre um desafio devido às multiplas possibilidades de abordagem
do tema. Autores consagrados como Jean Piajet, Lev Vygotsky, Mikhail Bakhtin e
Steven Pinker pesquisaram o assunto e propuseram teorias que tentam explicar o
que é e como funciona a linguagem. Em seus estudos, desenvolveram conceitos que
muito contribuiram para o estudo da linguagem, conforme o quadro abaixo.
Se por um
lado os cognitivistas defendem a linguagem como instinto desenvolvido a partir
da cognição, os interacionistas a entendem como produção sócio-histórica e
cultural. Os avanços das neurociências também trazem muitas contribuições para
os estudos nesta área, mas ainda assim algumas polêmicas persistem,
especialmente as de natureza ideológica. Por isso, ao invés de confrontar
posições, tentaremos apreender a essência de cada teoria e fazê-las interagir
com situações cotidianas.
A título de
ponto de partida, vamos começar refletindo um pouco sobre o que vem a ser o processo de aquisição e desenvolvimento da
linguagem oral, analisando inicialmente os termos separadamente para depois
entender a que se referem quando juntos. Vamos lá!
O termo processo remete a algo que acontece em
continuidade e com uma relação de interdependência entre as atapas. Dizer que
algo é contínuo é o mesmo que dizer que não há interrupção e que cada evento
está associado ao que ocorreu antes e irá repercutir no que virá depois. A
linguagem é assim. Ela se constitui em um processo que inicia antes do
nascimento e segue por toda vida.
Já o termo aquisição, quem procurar nos
dicionários verá que ele se refere ao efeito
de adquirir algo, ou seja, de pegar para si uma ‘coisa’ que já está pronta. No caso da linguagem, estaria relacionado a uma dotação
genética inata para o movimento de input/output
da língua falada, respeitando-se o processo de maturação das estruturas orgânicas. Ou seja, é o mesmo que dizer que as crianças já
nascem programadas com uma espécie de gramática universal e que, com o passar
do tempo, ela amadurece e começa a falar de acordo com a língua da região em que vive. Para os
interessados nessa abordagem, é interessante a leitura de O
instinto da linguagem (PINKER, 2004).
Em
contrapartida, quando se fala de desenvolvimento,
em geral se quer referir o aumento quantitativo e qualitativo das estruturas e
processos envolvidos em um determinado contexto. No caso da linguagem, isso
remete à sua constituição através construção histórica dos vínculos afetivos e
sócioculturais. Nessa perspectiva, o desenvolvimento da linguagem ocorre
através do diálogo e da troca de influências entre o sujeito e seu grupo, ou
seja, na família, na escola, no trabalho e nos outros lugares onde as pessoas
se encontram.
No caso
específico da linguagem oral, o desenvolvimento não diz respeito simplesmente
ao aumento do número de emissões mas também a evolução da complexidade, tanto
no nível de percepção quanto na produção de sons, sílabas, frases e do
discurso. A leitura de A formação social
da mente (VYGOTSKY, 1991) pode ajudar a compreender melhor esta
perspectiva.
Portanto, se
à primeira vista as expressões aquisição e desenvolvimento parecem análogas,
lembramos que para quem se aprofunda no tema, elas chegam a ser consideradas
antagônicas, visto que a primeira
presupõe que todos os indivíduo já nascem com um dispositivo para a linguagem e
que ela acontecerá a partir de um dado momento, enquanto que a segunda acredita
na importância fundamental da mediação do Outro, a ponto de atribuir a este
Outro o favorecimento ou a total inviabilização do processo, como mostrado nos
filmes L'Enfant Sauvage (1969) e Nell (1994).
Em se tratando da
expressão linguagem oral, algumas
pessoas acham que ela se reduz à palavra falada, mas não é bem assim. Choros,
gritos, ruídos, gorjeios, balbucios e risadas são manifestações de linguagem
oral, já que se utilizam de estruturas relacionadas ao sistema sensório motor
oral (boca, laringe e vias respiratórias etc.).
Esses comportamentos fazem parte de um amplo repertório de estratégias
de interação entre um sujeito e as pessoas do ambiente em que ele vive.
Essa relação da
criança com seus interlocutores tem início antes mesmo do nascimento, visto
que, em torno do quarto mês de gestação, em condições normais, o bebê começa a
perceber os sons internos e externos ao corpo da mãe e pode reagir a eles.
Alguns autores acreditam que conversar com a “barriga” pode estimular a
percepção da voz da mãe e/ou de outros familiares, facilitando seu
reconhecimento após o nascimento.
Ao nascer, através do
choro inaugural, a criança interage diretamente com o universo social a sua
volta e em seus primeiros meses de vida, ela passa a emitir sons de acordo com
suas sensações e com os estímulos do ambiente. Em casos de desenvolvimento
dentro dos padrões considerados normais, por volta do quarto ou quinto mês de nascido,
o bebê estará iniciando a fase do balbucio, que funciona como um exercício
preparatório para etapas mais elaboradas da comunicação oral.
Em
uma sequência crescente de variedade e sofisticação de
emissões, por volta dos 12 meses, a criança deverá falar algumas palavras
associadas a seu contexto de vida. Aos 24 meses ela deverá juntar palavras e
aos 36 meses terá condições de narrar histórias e situações vividas. Para que
essas etapas se sucedam, é importante assegurar que a criança ouça bem, compreenda o que ouve e que ela
seja adequadamente estimulada. Assim, ao longo de toda sua vida, o sujeito aprenderá
novas maneiras de se expressar.
Além disso,
é importante considerar que a infância é atravessada por diversos tipos de linguagem, sendo o uso da
expressão linguagem oral, uma
referência não apenas aos sons emitidos, mas também a seu papel de aspecto
constituinte do sujeito, e, ao mesmo tempo, um traço que distingue o ser humano
de toda e qualquer outra espécie viva. Cientes destas posições, vamos
observá-la sem contudo estabelecer comparações com outros tipos de linguagem.
A essa
altura, você deve está achando que já leu muito mas ainda não viu nada que
relacione, de fato, as tais narrativas de Contos de Fadas ao processo de
aquisição e desenvolvimento da linguagem oral. Engano! A relação entre essas
duas instâncias é tão próxima que por vezes elas podem se confundir. Entenda
que, ao perceber os sons do mundo, a criança gradativamente aprende a identificar
a voz do leitor/contador, tomando-a como modelo de linguagem oral. Assim,
quando as crianças escutam Contos de Fadas, tais histórias podem se tornar um
importante estímulo para o
desenvolvimento de sua linguagem.
Neste sentido, entre os muitos
aspectos importantes para o desenvolvimento da
linguagem oral, a temporalidade tem papel significativo quando a criança
começa a falar, visto que, nesta fase, ela se limita situações imediatas e ao
uso de verbos no presente. Naturalmente, ao ouvir os contos, a criança vai sendo
conduzida a diferentes tempos de conjugação verbal visto que o passado
e o futuro lhes são apresentados através do uso das expressões de
abertura e de encerramento. Assim, o “Era uma vez...” descortina para a criança um tempo passado e o “...felizes para sempre!” indica a possibilidade de um tempo futuro.
Outros aspectos da linguagem, como o léxico e o
semântico também são contemplados por essas narrativas. Ao ouvir as histórias,
as crianças aprendem um grande número de substantivos e adjetivos, ampliando
seu vocabulário e, conforme observado por Takemoto (2005), ao recontar as
histórias, as crianças exibem expressões faciais que transmitem surpresa, medo,
tristeza, rancor e felicidade, demonstrando que percebem o conteúdo semântico
das palavras.
No caso específico dos Contos de Fadas, algumas
características deste gênero literário por si só, contribuem para que a
linguagem da criança se torne mais elaborada e diversificada. Seu tipo
de linguagem oferece a criança diferentes formas de uso da língua, trás de
volta e expressões que já não são usadas atualmente e criam neologismos (novas
palavras). Sem eles, dificilmente uma criança moderna saberia o significa
“picar o dedo em uma roca” ou conheceria pronomes de tratamento como “Vossa
Alteza” ou usaria palavras como “Abracadabra”.
Assim, com base em
pesquisas científicas, podemos acreditar que, seja a linguagem oral entendida
como habilidade inata ou como uma construção sociohistórico e cultural, os momentos
de interação através da leitura/contação das narrativas podem oferecer
preciosos estímulos ao desenvolvimento da linguagem na infância. E essa é
apenas uma parte da contribuição dos Contos de Fadas ao desenvolvimento do
sujeito, visto que eles atuam também na construção da estabilidade emocional,
do desenvolvimento moral e até na aprendizagem da leitura/escrita. Mas isso já
é assunto para outras conversas!
Feliz de ter estado aqui mais uma vez,
desejo bons dias a todos e...
Até a próxima!!
Cristiane Takemoto
Fonoaudióloga, Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional, com formação em
Psicanálise Clínica e Mestrado em Linguística.
Referências:
LIMA, Lauro de O. Piaget
Para Principiantes. 2. Ed. São Paulo: Summus, 1980.
PINKER, Steven. O
instinto da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente.
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
TAKEMOTO,
Cristiane de M. L. O discurso narrativo oral: um estudo do papel do reconto.
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, 2005. E-book
disponível em http://letrasdigitaisufpe.blogspot.com.br/
Filmes:
APTED, Michael. Nell. Estados Unidos, 1994.
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Elaine Cunha