Era um bosque belíssimo, conhecido pela exuberância de suas árvores,
pela doçura e colorido dos frutos, graças ao cuidadoso Lin Chang, que
amava o bosque mais que os valiosos objetos de jade e porcelana de sua
casa.
Ver florir, toda primavera, o bosque das cerejeiras, vê-lo colorir-se
no outono com a beleza dos frutos, era uma festa em seu coração e em
seu olhar.
Certo dia, Lin Chang precisou fazer uma viagem de negócios à vizinha
cidade de Yanshii. Lá encontrou, por acaso, um velho sábio que pregava
as antigas verdades no centro de uma praça cheia de sol. Nem o mestre
nem os jovens ouvintes afastavam-se em busca de sombra, preocupados em
ensinar e aprender.
A cena impressionou Lin Chang; de volta ao lar, já não lhe parecia
tão amena a sombra do bosque das cerejeiras. A lembrança do ancião e
seus discípulos expostos à inclemência do sol diminuía o prazer das
coisas agradáveis de sua vida. Porque Lin Chang amava a Sabedoria tanto
quanto ao bosque, e admirava aqueles virtuosos sábios dedicados a
transmitir a Verdade às novas gerações.
Uma idéia brotou em seu espirito… Por que não ofertar o bosque das
cerejeiras ao venerável mestre e aos discípulos? Ali, à sombra das
árvores, teriam ambiente para estudo e meditação. A venda dos frutos
seria um meio de sustento, e poderiam dedicar, assim, maior tempo ao
estudo.
Deveria ou não – vacilava – desfazer-se de seu bosque? A indecisão o
amargurava… Mais de uma vez aprontou-se para sair ao encontro do mestre,
mas, hesitante, voltava sempre atrás.
Certa manhã Lin Chang acordou decidido. Foi a Yanshii e ofertou o
bosque das cerejeiras ao mestre e aos jovens estudiosos da Verdade.
A dádiva foi recebida com alegria, como bênção divina; o velho sábio
agradeceu a Lin Chang a oportunidade de orientar os discípulos sem
expô-los aos excessos do sol.
Passados alguns dias, mudaram-se para o bosque em Suniang, onde o mestre passou a pregar à sombra das cerejeiras.
As aulas tornaram-se mais agradáveis, cresceu o aproveitamento dos
discípulos. Para Lin Chang era motivo de satisfação ver ali o venerável
mestre cercado de jovens, e ele mesmo, algumas vezes, ia ouvir as lições
ministradas.
Certa manhã, o ancião chamou um dos discípulos e disse:
- A época das chuvas está a meio caminho. É nosso dever podar as cerejeiras, para que dêem bons frutos.
O jovem, no mesmo dia, começou a podar as árvores. Lin Chang, quando o
viu, não conteve o descontentamento. Surpreso e indignado, procurou o
mestre:
- Por que não me chamastes, venerável senhor, para podar as cerejeiras, mandando alguém fazê-lo sem avisar-me?
- Não desejamos incomodar-te, generoso Lin Chang. Deste-nos o bosque; nosso cuidado demonstrará quanto estamos agradecidos.
- Eu mesmo podava as cerejeiras, todos os anos… Ninguém conhece, como eu, a melhor maneira de fazê-lo.
- Temos conhecimento disso, respeitável Lin Chang… Mas não te
preocupes, saberemos tratar com carinho as cerejeiras que nos ofertaste
com tanta generosidade. Aguarda a época da colheita… Verás que não te
decepcionaremos.
Lin Chang cumprimentou o mestre e afastou-se. Sentia-se descontente.
Ele, o doador, que sempre cuidara do bosque, ele que o plantara e vira
crescer, não fora chamado, nem consultado, para podar as cerejeiras…
Como poderiam bem cuidá-las, desprezando sua experiência?…
Ressentido, desabafou a mágoa em conversa com os discípulos. Estes
ouviram, silenciosos, constrangidos, sem nada comentar. Mas a partir
daí, o bosque das cerejeiras não lhes parecia tão ameno.
O tempo passou, vieram outros dias… A primavera floriu as cerejeiras,
fazendo mais alegres e agradáveis as lições. Lin Chang, aos poucos,
esqueceu a mágoa, voltou a ser cortês e atencioso.
Porém, já não sorria ao ver o sábio e os discípulos entre as árvores floridas.
Certo dia, o mestre falou aos jovens:
- Devemos fertilizar o bosque das cerejeiras para que os frutos nasçam com vigor.
Lin Chang estava, nesse dia, em viagem de negócios. Ao retornar, viu
com surpresa os discípulos ocupados em adubar a terra. Revoltado, correu
ao mestre:
- Venerável senhor, por que mandastes adubar o bosque das cerejeiras?
- Para fertilizá-lo, generoso Lin Chang.
- Sem procurar, sequer, consultar-me sobre o melhor adubo?
- Compreendemos tua preocupação, Lin Chang mas fica tranqüilo… O
adubo foi apropriado. Temos grande carinho com este bosque, oferecido a
nosso trabalho por tua generosidade.
Lin Chang, em leve curvatura, despediu-se e afastou-se. Porém, não
estava tranqüilo… Seu amor próprio sentia-se ferido, o descontentamento
sombreava as boas tendências de sua alma.
Assim, chegou o outono, amadurecendo os frutos das cerejeiras, tornando-os cor de carmim. O velho mestre falou aos discípulos:
- Estes são os frutos da generosidade de Lin Chang, nosso doador; não
devemos negociar com eles. Façam a colheita, levem os frutos à cidade,
mas vendam por pequeno preço a quem não possa comprar ofereçam
graciosamente.
Os discípulos cumpriram as ordens do mestre. Encheram cestos com
frutos e levaram à cidade, vendendo por preços acessíveis,
presenteando-os às criança e aos pobres.
Lin Chang, que passou à tarde pela cidade, quando os viu ficou
profundamente ofendido. Era demais… Vender suas cerejas, as mais rubras e
doces da região, a qualquer preço, dá-las a crianças e mendigos… Que
desperdício! Estavam atirando fora sua dádiva.
No dia seguinte, bem cedo, foi ter com o mestre. Encontrou-o debaixo de uma cerejeira, a observar a colheita.
- Senhor – disse Lin Chang – como pudeste vender minhas cerejas a tão
baixo preço? São as melhores da região… Por que desperdiçá-las assim?
O ancião olhou Lin Chang com serenidade, sem deixar de reparar no tom
possessivo com que este se referira às cerejas. E respondeu:
- Será farta a colheita, Lin Chang, e pequenas são nossas
necessidades. Julgamos acertado estender aos outros os benefícios que
nos proporcionaste.
Pensávamos poder dispor dos frutos do bosque de cerejeiras. Mas enganamo-nos, perdoa-nos…
- Dei-vos o bosque e as cerejas, sábio senhor, mas não para que
desperdiçassem frutos tão saborosos e puros… – disse Lin Chang, enquanto
recolhia uma cereja que nesse instante caíra da árvore, aos seus pés.
Já ia saboreá-la, levando-a à boca, quando o mestre o interrompeu, dizendo:
- Generoso Lin Chang, não te parece justo, antes de comer esta cereja, indagar da árvore o que desejas que faças?
- Como, senhor? Não vos compreendo…
O sábio homem dirigiu o olhar à cerejeira que sombreava e perguntou à árvore:
- Generosa árvore, o que desejas que Lin Chang faça com o fruto que lhe ofertaste espontaneamente.
Deve comê-lo? Ou preferes que Lin Chang o venda?
Queres que o guarde para replantar? Desejas que ele o ofereça a alguém?
- Mestre, não compreendo… Não vistes que a cereja, desprendeu-se da árvore, caiu aos meus pés?
- Sim, Lin Chang… Da árvore desprendeu-se a cereja, ela é tua. O
mesmo deves fazer quando ofertares um fruto, porque apenas assim
ofertarás realmente.
Diante dessas palavras, Lin Chang não pôde esboçar explicação ou
desculpa. Permaneceu calado, titubeante, enquanto o sábio lhe dizia:
- Queremos restituir o bosque das cerejeiras; não nos agrada ser
motivo de intranqüilidade para ti. Fica com ele, Lin Chang… Voltaremos à
nossa praça em Yanshii. Quando desejares, procura-nos, que lá
estaremos.
O velho sábio despediu-se e foi embora, seguido pelos discípulos, de volta à antiga praça onde pregava sob o sol e chuva.
De suas generosas palavras, ensinando a verdade, dizem que nasceram
árvores, muitas árvores, que proporcionavam sombra, flores e frutos a
todos que as buscavam.
Lin Chang permaneceu em seu bosque. Porém, desde que o mestre de lá
se afastou com os discípulos Lin Chang, o homem que deu mas não se
desprendeu do bosque das cerejeiras, nunca mais pôde sentir-se dono
dele.